Discurso de Posse de José Bezerra

12/12/2015

DISCURSO DE POSSE NA CADEIRA Nº 03 DE MEMBROS CORRESPONDENTES

Excelentíssimo Senhor Professor Jorge Henrique Vieira Santos, digníssimo presidente da Academia Gloriense de Letras

- Excelentíssimo Senhor Domingos Pascoal de Melo, representante do Dr. José Anderson Nascimento, digníssimo presidente da Academia Sergipana de Letras

- Excelentíssimo Senhor Francisco das Chagas Vasconcelos, presidente da Academia Literária do Amplo Sertão Sergipano

- Ilustríssimos confrades e confreiras Eleomar Marques, Leunira Batista e Lenaura Aragão, da Academia Literária do Amplo Sertão Sergipano

- Ilustríssimo confrade Jodoval Luiz dos Santos, digníssimo presidente da Academia Riachuelense de Letras

- Ilustríssimo confrade Sildeno Dantas, da Academia de Ciências Contábeis

- Distinta confreira Cácia Valéria de Rezende, professora e pesquisadora gloriense, que nesta noite é empossada nesta Academia como seu Membro Efetivo

- Ilustríssimos Senhores Adailton Tavares Cunha e José Augusto Andrade Lima, sobrinhos da Professora Cleodice Tavares Lima, minha patrona

- Diletos confrades e confreiras

- Meus amigos, parentes e conterrâneos

* * *

Esta solenidade assinala o terceiro aniversário deste auspicioso sodalício, a gloriosa Academia Gloriense de Letras. E é também nesta oportunidade que tomo posse como seu Membro Correspondente.

Senhoras e senhores, esta cerimônia é para mim de um encanto indefinível. Esta cerimônia reveste-se para mim de um significado todo especial. Ela simboliza mais um passo que dou em retorno às minhas origens, reintegrando-me à vida cultural da hoje próspera e pujante Nossa Senhora da Glória, que merecidamente ostenta o título de Capital do Sertão, antiga Boca da Mata, berço da minha família, uma das famílias fundadoras do arruado da Boca da Mata.

Procurarei ser breve. Convido-os a fazer comigo um passeio pelo passado desta terra que amamos. Falarei de coisas que ocorreram quando muitos dos senhores e senhoras ainda não eram nascidos. Costumo dizer que a melhor forma de demonstrarmos amor à nossa terra é estudando a sua geografia e a sua história.

As famílias fundadoras da velha Boca da Mata foram os Souza, os Tavares, os Feitosa, os Banheiro, os Barros (família Roque), os Amaral, os Barreto, os Bompisá, os Bindô, os Bezerra, os Minã. Os Minã tinham laços de parentesco com os Bezerra. Um dos mais destacados personagens da família Minã foi o legendário Zé da Shell, pai de meu amigo Zelande, que é sogro de um dos integrantes desta gloriosa Academia. Na verdade, Zé da Shell, filho de seu Laudelino, não era da família Minã - ele casou com uma filha de seu Minã.

A família Bezerra aos poucos vai minguando. Filemon Bezerra, Zezé Bezerra e Maria da Graça não puseram o sobrenome Bezerra em seus filhos. Cícero Bezerra Lemos, que deu seu nome a um tradicional colégio desta cidade, foi embora daqui muito cedo. Cícero Bezerra foi o primeiro gloriense a ser eleito deputado em Sergipe. Elegeu também seu filho Orlando Bezerra e seu sobrinho José Carlos de Souza, o Carlito, irmão de Manoel Adalberto Souza, fiscal de rendas aposentado. José Carlos de Souza foi o orador da primeira turma de bacharelandos da Faculdade de Direito de Sergipe, em 1955, tendo sido deputado estadual, secretário de Educação e secretário de Justiça, exercendo cargos nos mais diversos setores da administração pública estadual, inclusive como procurador, chefe da Casa Civil, membro do Conselho Estadual de Educação e conselheiro do Tribunal de Contas do Estado de Sergipe - do ponto de vista cultural, o professor José Carlos de Souza é o filho mais ilustre de Nossa Senhora da Glória até hoje.

Dentre os remanescentes da família Bezerra, destaco o grande fazendeiro Edézio Bezerra Lemos, filho de seu Fausto do Riachão. Edézio sem dúvida é conhecido de todos os senhores e senhoras. Outra remanescente da família Bezerra é a distinta senhora também sem dúvida por todos aqui conhecida como São José de Donício, neta de André Bezerra Lemos, o famoso André da Grota do Boi. Cito ainda como remanescente dona Antonieta Bezerra, conhecida como Totó, viúva de Maneca de Sátiro. Dona Maria Bezerra, viúva do conhecidíssimo Totonho de Zé Dias, faleceu recentemente. Cito também minha irmã, Donana, que aqui está presente. Donana não pôs o sobrenome Bezerra em seus filhos. Eu brinco com eles dizendo que eles são uns bezerros desmamados...

O primeiro prefeito de Glória foi um cidadão da família Souza. Chamava-se João Francisco de Souza, conhecido como João de Simplício. O segundo prefeito foi da família Tavares, seu Gerino Tavares. O terceiro prefeito de Glória foi da família Feitosa, Manoel Messias Feitosa - este colégio em que estamos teu o neu nome. O quarto prefeito foi Zezé Bezerra, irmão de Filemon Bezerra. Filemon também foi prefeito. Foi chefe político de Glória por cerca de cinquenta anos. Chiquinho Machado foi prefeito duas vezes, Ulisses Alves Oliveira, uma vez. Os Feitosa voltaram ao poder com José Ribeiro Aragão, que, apesar de não ter Feitosa no sobrenome, era um legítimo Feitosa por laços familiares. Aliás, havia aqui duas famílias Feitosa, cabendo citar, no outro ramo dos Feitosa, o saudoso Antônio Alves Feitosa, seu Toínho, que foi prefeito duas vezes. Em sua primeira administração, seu Toínho foi substituído por José Batista Sobrinho, seu Batista, meu amigo, como amigos meus foram também seu Toínho e seu Zé Ribeiro. Dos mais novos, cito apenas José Elon de Oliveira, filho de seu Lacerda. Deixo de citar os mais recentes, porque o meu enfoque aqui é o passado. O que mais chama a atenção é a forma pacífica como os velhos chefes políticos se comportavam. Ao contrário de outras cidades em que os políticos eram inimigos e vez por outra um contratava um pistoleiro para dar fim ao outro, em Glória seu Filemon e seu Zé Ribeiro moravam vizinhos, cumprimentavam-se, nunca um cogitou em mandar matar ou desrespeitar o outro.

Escolhi como minha patrona a insigne professora Cleodice Tavares Lima. É ela que é merecedora de toda homenagem que pela generosidade dos meus confrades e pelo carinho das senhoras e senhores me é atribuída nesta noite, e é sobre ela que devo concentrar a minha fala. Porém, por razões que logo mais revelarei, para dizer quem foi a professora Cleodice, devo, antes, contar como tive o privilégio de tê-la como minha mestra.

Nasci e me criei nestas caatingas, num tempo muito diferente de hoje. Aqui neste recinto estão presentes muitos jovens. Muitos aqui já nasceram no conforto da luz elétrica, da água encanada, das ruas calçadas, das estradas asfaltadas. E os mais jovens talvez nem possam imaginar como seria o mundo sem o celular, sem a internet.

Quando eu nasci nestas caatingas, não havia nada disso. Eu vi um automóvel pela primeira vez quando tinha uns oito anos de idade.

Neste sertão a única rodagem transitável vinha de Aracaju e terminava aqui. Não havia rodagens para Monte Alegre, nem para Itabaiana, nem para Carira. Pelos idos de 1950 a 1960, a linha Glória a Aracaju era feita na marinete de seu Elias. Marinete era como se chamavam os ônibus naquele tempo. A marinete de seu Elias fazia o trajeto de Glória para Aracaju uma vez por semana. Saía daqui uma hora da madrugada e chegava à capital às nove horas do dia. Isso se não quebrasse, se não furasse um pneu. A estrada velha passava pela Quixaba, Mesinhas, Feira Nova, Dores, Siriri, dobrava à direita, passava abeirando Divina Pastora, ia sair em Maruim. Não havia atoleiros. O problema eram as ladeiras escorregadias e cheias de regueiras. Quando chovia, em muitas ladeiras os passageiros tinham de descer para empurrar a marinete.

A antiga Boca da Mata recebeu este nome porque o arruado ficava literalmente na entrada, na "boca" das matas virgens da Quixaba, da Lagoa e do Bravo. As matas da Lagoa pertenciam a Manoel Bezerra Lemos, conhecido como seu Duda. Ainda alcancei aquelas matas, preservadas até recentemente pelos herdeiros, Filemon Bezerra e Zezé Bezerra. As matas da Lagoa emendavam com as matas do Bravo, do Largo, da Barra das Almas, do Riachão, da Guia, acompanhando o Rio Sergipe até perto de Carira. Eram léguas e léguas de matas que nunca viram machado ou foice.

Acabaram as matas. Roçaram as caatingas. Todo o sertão está virando deserto. A terra está ficando nua. A partir do bairro que ficou conhecido como Divineia, apurando-se a vista para o sul, enxergam-se as serras de Frei Paulo e do Alagadiço. Foi ali, naquele pé de serra, que eu nasci.

Com 5 anos de idade, meus pais se mudaram para bem perto daqui, para a Barra das Almas, a légua e meia da Boca da Mata, que já se chamava Glória, mas meu pai só chamava pelo nome antigo.

Na Barra das Almas, meu pai comprou uma pequena propriedade denominada Lagoa Grande. Era um homem pobre, mas um homem honrado. Só compreendi a dimensão humana de meu pai depois que ele se foi. Era casado com dona Pastora Bezerra, e por isso era chamado de Manoel de Pastora. Minha mãe, Pastora Bezerra, ou simplesmente Pastorinha, era prima carnal de Cícero Bezerra e Filemon Bezerra.

Na minha infância, eu era conhecido como Zé de Pastora, ou Zé de Manoel de Pastora. Todos os meninos tinham apelidos: Zé de Marica, Doutor, Véio, Zé Banquista...

Naquele tempo, nestas brenhas, as únicas festas eram as santas missões, missas, novenas, sempre ligadas a rezas. Minha mãe era muito devota. Na juventude, foi cantora nas igrejas de Alagadiço e Frei Paulo. Em Glória, não perdia a missa dos domingos.

Quando eu tinha 10 anos de idade, pus na cabeça que queria ser padre. Meu pai foi contra. Precisava do filho para ajudá-lo na roça. Só tinha dois filhos - eu e Donana, já mocinha, preparando-se para casar. Mas minha mãe exultou com a idéia. Lá em casa a última palavra era de minha mãe.

Num domingo, depois da missa e dos batizados, minha mãe me levou ao Padre Amaral. Padre Amaral foi o primeiro vigário da recém-criada Paróquia de Nossa Senhora da Glória. Ela foi direto ao ponto, sem rodeios:

- Padre Amaral, este meu filho quer ser padre.

O austero sacerdote olhou-me como quem avalia um cabrito. Acho que não levou muita fé no que viu.

- Ele já tem o primário? - perguntou o vigário.

Nem minha mãe nem eu sabíamos o que era "primário". Morando na roça, eu tinha aprendido a ler e escrever com meu pai e minha mãe. De noite. À luz do candeeiro. Aos 5 anos eu já sabia ler e escrever. Eles também me ensinaram a fazer contas de somar e diminuir. Contas de multiplicar, só com um algarismo no multiplicador. Dividir não aprendi, porque meus pais também não sabiam. A preocupação de meu pai, como de todo homem da roça, era que o filho soubesse fazer contas de tarefas de terra e de arrobas de algodão.

O padre explicou que eu devia entrar numa escola, estudar durante quatro anos, e, quando recebesse o diploma do primário, voltasse a falar com ele, se ainda tivesse a intenção de ser padre, pois no seminário só entrava quem já tivesse o curso primário.

Saí da igreja desolado. Eu não tinha uma coisa chamada "primário". E para conseguir essa coisa teria de esperar quatro anos.

Quatro anos! Na minha cabeça de menino, isso era uma eternidade. Apertando o passinho ao lado de minha mãe, a caminho de casa, eu disse:

- Mãe, quero começar hoje mesmo esse negócio de primário.

Minha mãe atravessou comigo a praça da igreja e foi procurar a professora Cleodice.

E aqui, senhoras e senhores, começa a minha relação com essa figura humana incomparável, a professora Cleodice Tavares, que escolhi como minha patrona nesta Academia, e melhor escolha não poderia ter feito.

A escola de dona Cleodice ficava na esquina da Praça da Igreja com o beco que dava para a Rua de Cima, atual Avenida 7 de Setembro. A escola funcionava na sala da frente da casa da mãe da professora, dona Zefa Tavares, matriarca da família Tavares, outra família fundadora da velha Boca da Mata.

Minha mãe expôs a dona Cleodice o grave problema. Eu ao lado, ansioso. Precisava ter o primário, fosse lá o que isso fosse. Pri-má-rio. Palavra estranha, mas que para mim era a chave para a abertura de um novo mundo.

Dona Cleodice combinou com minha mãe o que devia ser feito. A escola era particular. Não tinha farda. Mas os alunos deviam ir à aula sempre bem vestidos, asseados, cabelos aparados, calças compridas, camisa composta, sapatos. Nada de sandália. Nada de boné. E avisou: na aula, aluno não tinha mãe, a mãe era ela. Saiu da linha, caía na palmatória. Não decorou a lição, a palmatória cantava. Não acertou nas contas, palmatória. Não se queixasse depois. Minha mãe concordou. E eu também. Para conseguir o primário, fosse isso o que fosse, eu estava disposto a tudo.

No mesmo dia, minha mãe comprou caderno, lápis e cartilha na bodega de seu Abdias.

Na segunda-feira, dia 21 de abril de 1959, acordei cedo, me arrumei todo, e às 7 horas em ponto me postei na frente da escola.

Deu 8 horas. Deu 9. A escola fechada.

Bati palmas à janela do oitão. Dona Zefa Tavares foi quem veio atender. Me informou que naquele dia não tinha escola, era feriado, 21 de Abril, Dia de Tiradentes.

Feriado? Dia de Tiradentes? Voltei para casa preocupado. O que era "feriado"? E naquele dia iam tirar os dentes de quem?

Minha mãe e meu pai não tinham o primário - no sertão ninguém tinha. Minha mãe lia e relia a Missão Abreviada e tinha vários livros de orações. Meu pai tinha mais de cem folhetos de cordel. Todo ano ele comprava o Almanaque do Pensamento. Quem lia o Almanaque do Pensamento sabia tudo. Eles me explicaram que Tiradentes era um homem importante da história do Brasil, tinha dado a vida pelos brasileiros, e na escola eu ia ficar sabendo melhor como foi isso.

No dia seguinte, terça-feira, 22 de abril, de novo me levantei cedo, me arrumei, fui à escola.

Estava fechada. Deu 8, deu 9 horas. Fechada. Para não incomodar de novo dona Zefa Tavares, que podia até me dar um carão por estar importunando demais, perguntei a dona Juranda, que morava entre a escola e o cartório, por que a escola estava fechada.

- Hoje não tem aula, menino! - disse dona Juranda -, você não sabe que hoje é feriado? Descobrimento do Brasil, por Pedro Álvares Cabral.

Transtornado, quase não acertei o caminho de casa. Todo dia era feriado! Daquele jeito eu não ia tirar o primário nunca!

Felizmente, no dia 23 de abril de 1959 pude afinal saber como era uma escola.

Dona Cleodice era a organização em pessoa. Tudo nos eixos. Rigorosa. Objetiva. Era precisa em todos os detalhes, como o mecanismo de um relógio. Acho que foi por isso que ela nunca casou. Era vitalina, "moça velha", como se dizia naquele tempo. E olhem que era uma mulher bonita, fina, culta... Mas era muito perfeita, tão perfeita que afugentava os pretendentes, pois com certeza, para ser marido de dona Cleodice, o cabra tinha de se virar nos trinta, sem falhas ou erros.

Para abreviar a história, eu tirei o curso primário - acreditem - eu tirei o primário todo em apenas um ano e meio! Comecei em abril de 1959, e no fim do ano seguinte concluí o curso que normalmente duraria 4 anos.

Naquele tempo, para entrar no ginásio, era preciso fazer uma coisa chamada Exame de Admissão. Era um verdadeiro Vestibular. O Padre Amaral me levou a Aracaju no seu jipe, um Jeep Willys 1958, verde, de três marchas. No caminho, foi me fazendo perguntas de geografia e história, me fez conjugar verbos, e afinal me tranqüilizou:

- Zé, você vai passar.

Passei. Em um ano e meio, dona Cleodice tinha me ensinado a fazer contas de somar com uma fileira enorme de algarismos e várias parcelas. Ela passava contas de multiplicar enormes, contas de dividir com até dez algarismos no divisor. Naquele tempo ninguém imaginava que um dia viessem a existir máquinas de calcular. No fim, tirava-se a prova dos nove. Dona Cleodice passava de carteira em carteira, vendo como iam as coisas. Conferia as contas de cada aluno. Todo dia tinha ditado. Dona Cleodice era disciplinadora. Na aula só se escutava o ruído dos seus passos. Até tossir ou espirrar era proibido. As lições de História, Geografia e "Ciências" eram decoradas. Ela marcava de lápis: "Decore para amanhã daqui até aqui". Na hora de tomar a lição, o menino tinha de recitar o que decorou. Linha por linha, ponto por ponto. Pequenos lapsos eram perdoados. Porém, se o menino não soubesse a lição por completo, lavava meia dúzia de bolos e teria de acumular com a lição do dia seguinte a lição que ficou pendente.

Só uma vez não acertei a lição. Era um ponto de História do Brasil que envolvia uma invasão de franceses ao Rio de Janeiro, com nomes esquisitos, Villegagnon, Duguay-Trouin. A professora perdoava os erros de pronúncia, mas a história tinha de ser contada. Eu tinha perdido tempo decorando a forma como eram escritos os nomes dos personagens e não sabia o principal, que era a história da invasão. Dona Cleodice não perdoou:

- Já está mostrando as unhas, não é, José? Você chegou aqui todo tabareuzinho da Barra das Almas, ligado na lição, mas agora está se juntando com os moleques da rua, não estuda mais... Vai ver que foi jogar futebol, em vez de aprender a lição. Vou falar com dona Pastora. Me dê pra cá sua mão.

Seis bolos de palmatória. A partir daquele dia, toda vez que leio ou ouço falar na invasão francesa ao Rio de Janeiro, me lembro da palmatória de dona Cleodice.

Bendita dona Cleodice... Foi ali, na esquina da Praça da Igreja com o beco da saída para Monte Alegre que eu fui apresentado por ela ao misterioso mundo das frações ordinárias e decimais, da regra de três, da raiz quadrada. Tudo isso em um ano e meio. Mérito meu? Não. Tudo devo a dona Cleodice. Se demorasse mais, não seria preciso fazer o ginásio, pois dona Cleodice ensinava tudo.

Abençoada professora dona Cleodice. Saudosa mestra.

Cleodice Tavares Lima nasceu no dia 16 de novembro de 1926. Era filha de João Tavares de Lima e Josefa Tavares de Lima.

Ainda muito jovem, foi estudar em Aracaju. Naquele tempo, sequer se cogitava uma mulher ser médica, advogada, dentista ou engenheira. Essas profissões eram para os homens. As mulheres não trabalhavam. E para cuidar de marido, criar filhos e ser dona-de-casa não era preciso estudar. A única profissão que uma mulher podia ter era a de professora. Para isso, havia as chamadas "escolas normais". As estudantes eram chamadas de "normalistas".

As escolas normais surgiram no Brasil durante o Império, mediante uma lei de 1835. O Brasil copiava o modelo implantado na Alemanha com o movimento Pestalozziano. O Método Pestalozzi visava à preparação do "homem integral". Pestalozzi dedicou boa parte de sua vida à causa de uma educação que chegasse ao povo, num tempo em que o ensino era privilégio exclusivo dos afortunados. Partia-se do pressuposto de que o ensino devia ser obrigatório e que houvesse "normas" para a formação de professores. A primeira instituição com o nome de Escola Normal surgiu na França (École Normale), inspirada no modelo alemão (Normalen Schule). Eram instituições de formação de professores - mas inicialmente, professores homens. - Destinavam-se à implantação de novas práticas de ensino, para substituir os antigos mestres-escola, os professores da época para o ensino primário. Havia uma orientação no sentido de incutir nas crianças o espírito do militarismo e da exaltação do amor à pátria. Meninos e meninas usavam fardas imitando uniformes militares. Os estudantes aprendiam a marchar, e havia paradas e desfiles organizados sob rígida disciplina marcial, com tambores, cornetas e bandeiras, atendendo a vozes de comando dos tipos "Sentido!", "Marche!", "Direita!", "Volver!", "Alto!", "Descansar!". Enfiava-se na cabeça dos jovens que eles deviam matar e morrer pela pátria.

Em Sergipe, como nas demais províncias, foi criado também um curso normal em 1870. Funcionava no prédio do Colégio Atheneu Sergipense. Em 2 de fevereiro de 1874, foi fundada a nossa Escola Normal, só para homens, passando a aceitar mulheres a partir de 1877. Em 1923, a escola recebeu a denominação de Escola Normal Ruy Barbosa. Em 1947, passou a ser denominada Instituto de Educação Ruy Barbosa. Porém todo mundo continuou chamando de "Escola Normal".

Muitos dos senhores e senhoras aqui presentes conheceram a Escola Normal de Aracaju, ali na Rua Laranjeiras, junto da Avenida Canal. Mas aquelas instalações são mais recentes. A antiga Escola Normal ficava na Praça da Catedral, ao lado do Cacique Chá, no prédio onde hoje está instalado o Centro de Turismo.

Foi ali onde estudou a menina Cleodice Tavares. Ela não foi para Aracaju sozinha. Era um grupinho de garotas filhas de grandes fazendeiros. Dentre elas, destaco duas primas: Iolanda, filha de Cícero Bezerra, e Maria Inês, filha de Zezé Bezerra. Imagine-se a preocupação e a saudade dos pais, naquele tempo, dados os precários meios de comunicação. Para eles, era como se suas filhinhas estivessem vivendo no outro lado do mundo. E imaginem as despesas. Era preciso ter muito dinheiro para manter uma filha estudando na capital.

Cleodice iniciou sua carreira de professora na cidade de Capela. Mas por pouco tempo. Além da saudade e das preocupações com a jovem filha, seu João Tavares e dona Zefa Tavares queriam ver a filha perto deles, pois não ficava bem uma moça morar sozinha.

De volta à casa paterna, tendo em vista que o grupo escolar de Nossa Senhora da Glória já tinha professora, a jovem mestra Cleodice preferiu instalar uma escola particular na casa de seus pais. Tinha uma média de 20 alunos. Sua escola rivalizava com a de outro professor particular, Manoel Cardoso dos Reis, conhecido como Manoel Professor, cuja escola funcionava na Rua de Capela. Mas Manoel Professor cobrava muito caro. E a palmatória dele era muito mais pesada.

Outras professoras merecem citação, tais como a professora Dalva Amaral, a professora Terezinha, a professora Dagmar, a professora Dejanira, a professora Glorinha. Mas estas são mais recentes.

O antigo grupo escolar de Nossa Senhora da Glória ficava no bairro Brasília. Em 19 de agosto de 1963, foi inaugurado um novo grupo escolar, denominado Grupo Escolar Cícero Bezerra, que é o atual Colégio Cícero Bezerra. Era um prédio gigantesco, em relação ao velho grupo na Brasília. O governador de Sergipe era João de Seixas Dórea. O prefeito de Glória era Filemon Bezerra Lemos, irmão de Cícero Bezerra. Dona Cleodice Tavares foi a primeira diretora da nova instituição de ensino.

A professora Cleodice Tavares faleceu em 5 de abril de 2013, aos 87 anos de idade.

Lembro-me bem do pai de dona Cleodice, seu João Tavares, um homem miudinho, dono de uma loja de tecidos na Praça da Feira, atual Praça Filemon Bezerra Lemos. A loja de tecidos de seu João Tavares ficava na esquina da praça com o beco de Chiquinho Machado. Naquele beco, que ligava a Praça da Feira à Praça da Igreja, ficava a barbearia de Zé Besouro, que tirou a barba do cangaceiro Lampião quando o famoso guerrilheiro do Pajeú passou pela Boca da Mata. Ao tirar a barba de Lampião, Zé Besouro tremia tanto que não conseguia firmar a navalha. Lampião perguntou:

- Tá cum medo, seu Bisouro? Quem divia tá cum medo era eu... De quem é o percoço?

- Tou cum medo não, Capitão - disse Zé Besouro. ¬- É que eu sou assim mermo...

No sufuco da incumbência, a navalha terminou cortando uma espinha no rosto de Lampião. O barbeiro ficou apavorado:

- Capitão, tá merejano um sanguinho aqui...

Lampião levantou-se, mirou-se no espelho, enfiou cinco mil-réis na algibeira do barbeiro e disse:

- Seu Bisouro, de hoje im vante, quano lhe dichere qui o sinhô é frouxo, mande qui cale a boca e diga qui neste lugá o sinhô foi o único home qui tirou sangue im Lampião.

Perdão, senhoras e senhores, meti Lampião nessa história, esquecendo que estava falando de minha saudosa mestra, dona Cleodice Tavares Lima, minha patrona nesta augusta Academia.

A loja do pai de dona Cleodice, seu João Tavares, ficava em frente a outra loja de tecidos, a loja de João Francisco de Souza, que foi o primeiro prefeito de Nossa Senhora da Glória. Naquela época prefeito era chamado de intendente. João Francisco era conhecido como João de Simplício. Quando Lampião passou por aqui - e lá vem Lampião de novo ¬-, dizia eu, quando Lampião passou por aqui, no dia 20 de abril de 1929, almoçou com seus cabras na casa de João Francisco. Almoço de primeira: jabá assada com farofa de cebola e arroz.

Dona Cleodice era irmã de Maria Tavares, casada com Zezé Bezerra, e de dona Beatriz, casada com Otacílio Venâncio.

Tinha quatro irmãos: Gerino, Generino, Geralcino e Gentil. Fui muito amigo de seu Gentil Tavares. Ele tinha um bar de sinuca. Era o bar mais grã-fino de Glória. Muitos aqui frequentaram o Bar de Seu Gentil. Seu Gentil zelava pelas suas mesas de sinuca como quem zela pela mulher amada. Ninguém bebia nem fumava perto de suas mesas de sinuca. Se numa tacada mais vigorosa a bola de sinuca caía ao chão, seu Gentil mudava de cor, perdia a compostura, interrompia o jogo, tomava o taco da mão do jogador delituoso, que ele fosse jogar no sinuca do diabo, não no seu. O bar de seu Gentil ficava na Praça da Feira, depois se mudou para a Avenida Lourival Batista.

Geralcino era solteirão. Era meio estranho, caladão.

Generino Tavares era dono de um dos primeiros caminhões que rodaram em Glória, um velho Chevrolet Brasil. É o pai de Clodoaldo, meu amigo de infância, que foi seminarista comigo. Elon, que foi prefeito de Glória, também foi seminarista.

Gerino Tavares era o mais rico. Faleceu recentemente. Era proprietário da fazenda Olhos d'Água e dono das terras ao fundo do cemitério que hoje formam um bairro inteiro. É o pai de José Augusto de Andrade Lima, médico veterinário e funcionário do Ministério da Agricultura, e de Antônio Jolié de Andrade, professor, que também foi seminarista.

A loja de seu João Tavares ficou depois para o seu genro, Otacílio Venâncio da Cunha, filho de João Venâncio, um cidadão de fala arrastada procedente de Altos Verdes, perto de Carira, que se mudou para a Boca da Mata e daqui não saiu mais. A casa de João Venâncio ficava no início da Rua de Cima, hoje Avenida 7 de Setembro. Dona Zefa Tavares tinha muitos terrenos. Num destes terrenos, Otacílio Venâncio construiu uma bela casa, recuada, com amplos espaços de um lado e de outro, na época a mais bonita casa de Glória. Nem sei se existe mais.

Senhoras e senhores, perdoem-me por me alongar nessas divagações sobre o passado, remexendo no baú da história, aludindo a uma Boca da Mata que se perdeu na bruma do tempo, falando até de Lampião... É que esta é a nossa história, jovens glorienses. Não tem futuro um povo que não cultua o seu passado.

O tempo passa tão rápido que a gente nem percebe. E como a gente leva a vida correndo para dar conta de tudo, termina não tendo consciência de que o tempo não para. O tempo não espera ninguém. E só notamos que ele passou depois que ele dobra na curva, deixando apenas a poeira das reminiscências. Muitos dos nossos planos morrem como planos. Muitos sonhos sequer chegam a ser sonhados de fato. Mário Quintana registrou em versos essa constatação sobre a velocidade das horas, dos dias, do ano, da vida:

"Quando se vê, já são seis horas

Quando se vê, já é sexta-feira.

Quando se vê, já terminou o ano

Quando se vê, passaram-se cinquenta anos."

Falei aqui de muitos jovens do meu tempo que também foram seminaristas. Glória naquela fase chegou a ter 9 seminaristas. Acho que nenhum se ordenou. Eu só passei três anos no seminário.

Curiosamente, o menino que mais tinha motivos para ser seminarista, pois morava vizinho à casa paroquial, ajudava missa, toca o sino da igreja, esse menino nunca pensou em ser padre. Esse menino, meu querido amigo de infância, Antônio Maurício, era filho de dona Maura, e por isso nós o chamávamos de Tonho de Dona Maura. O pai dele, seu Valdemar, tinha um emprego invejável, era Fiscal do Estado, trabalhava na Exatoria. Como se não bastasse, seu Valdemar tinha em casa uma oficina - seu Waldemar era marceneiro. O filho Antônio Maurício não quis ser padre. Casou com Maria, filha de dona Liinha, que morava bem em frente à casa de minha mãe. Dona Liinha era da família de seu Souza, outra família que remonta aos tempos da velha Boca da Mata.

Antônio Maurício Santos, Tonho de Dona Maura, encontra-se aqui, e certamente está emocionado com essas reminiscências. Senhoras e senhores, Tonho de Dona Maura, meu colega de juventude, é o pai do nosso querido Jorge Henrique, presidente da gloriosa Academia Gloriense de Letras.

Jorge Henrique é simples, e por trás de sua simplicidade esconde-se uma fulgurância, um cabedal de cultura, lucidez e conhecimento que não cabe nas suas limitações físicas, e, sempre modesto e simples, esse pequeno Jorge se agiganta a cada dia como professor, como poeta, como líder e incentivador da arte e da cultura. Que Deus lhe cubra de bênçãos, querido Jorge Henrique, que Deus o ilumine, ampare e atapete de veludo o seu caminho na seara das Letras.

Quero agradecer a minha indicação para ocupar esta cadeira nº 3 ao professor Francisco das Chagas Vasconcelos e à minha afilhada Maria Verônica Sales.

O professor Vasko é meu amigo de longa data. Conhecemo-nos no vetusto Colégio Tobias Barreto. Estudamos depois no Atheneu. Ele sempre brilhante, apaixonado pela Matemática, mas flertando com o Português e namorando às escondidas com o Latim. Fizemos juntos o concurso para o Banco do Brasil. Estávamos juntos na fila para a prova de datilografia. Fomos ambos por coincidência nomeados para a recém-criada filial de Nossa Senhora da Glória. Aqui fundamos, ao lado de José Nancides de Almeida, o Ginásio Comunitário Dom José Vicente Távora. Logo na inauguração, o Ginásio Comunitário já contava com mais de 100 alunos. O impressionante é que aquele Ginásio foi extinto, e seu nome foi rasgado da história - rasgado e incinerado. Não sei se aqui alguém já ouviu falar no Ginásio Comunitário Dom José Vicente Távora. Não sei como é que uma coisa tão importante na vida de uma cidade é subitamente esquecida assim. O professor José Nancides de Almeida desempenhou um papel de suma importância na vida gloriense. Quantos jovens deram sua arrancada na vida, graças ao Nancides. Morreu cedo. Seu nome era para estar na placa de alguma rua, praça ou avenida desta cidade. Lembrem aos nossos vereadores isso. A ingratidão é uma espécie de traição disfarçada.

Verônica Sales, que me indicou para esta cadeira de Membro Correspondente da Academia Gloriense de Letras, é minha afilhada. Os meus pais e os avós de Verônica já se conheciam quando se mudaram para aqui - meus pais fixaram-se na Barra das Almas, seu Francisco e Dona Candinha moravam na Cabeça da Vaca. A mãe de Verônica, minha querida comadre Zilda, é filha de Totonho de Zé de Bela, que me visitava todos os sábados. O pai de Verônica, meu querido compadre Zé de Candinha, também aqui presente, ao começar a vida com suas quatro filhas e um pirralho trabalhando na roça, plantando, limpando mato, catando algodão, fazendo farinha, tirando leite, cortando palma, certamente jamais imaginaria que um dia uma de suas meninas receberia um diploma universitário, faria mestrado em Portugal, vestiria uma pelerine de acadêmica.

Agradeço aos Membros Efetivos deste augusto sodalício a acolhida do meu nome como seu Membro Correspondente.

Diletos confrades:

Gileide Barbosa,

José Ancelmo Aragão

Ramon Diego Câmara

Edson Magalhães

Euvaldo Lima

Luiz Alves da Silva (Gauchinho)

Domingos Pascoal

José Araújo Filho

Carlos Alexandre

Lucas Lamonier

A maioria acatou o meu nome praticamente sem me conhecer, apenas por referências feitas por Verônica, Vasconcelos e Jorge Henrique. Espero não decepcioná-los. Sei da honraria, mas também sei da responsabilidade que significa ser Membro Correspondente de uma Academia Literária. Tudo farei para divulgá-la, para engrandecê-la. Nestes próximos dias, sairá da editora a terceira edição do meu Lampião - a Raposa das Caatingas. Antecipando-me ao que está sendo concretizado nesta noite, já mandei registrar nas notas da capa de fundo do meu livro que sou Membro Correspondente da Academia Gloriense de Letras. Está lá: membro da Academia de Cultura da Bahia, da Academia Literária do Amplo Sertão Sergipano, sócio do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, membro correspondente da Academia Internacional de Letras, Artes y de Ciencias de Argentina e membro correspondente da Academia Gloriense de Letras.

Esta Academia tem por lema a expressão latina "Ad gloriam per litteras". Não ambiciono atingir a "glória", no sentido de conquistar fama e sucesso. Contento-me em, por meio das letras, me reintegrar a Glória, a cidade de Glória, voltando às minhas origens, voltando à minha terra, onde minha vida começou, pois isto me basta. Este propósito me remete a outro lema latino: "Ad augusta per angusta", que, numa tradução livre, significa que para se chegar a um objetivo elevado é preciso passar por sofrimentos, é preciso passar por dores. Ora, já que estou falando de Letras, literalmente, quem vem para o sertão de Sergipe, para chegar a Glória tem de passar por Dores.

Viva Sergipe!

Viva Glória!

Viva a Academia Gloriense de Letras!

Viva a Literatura Sergipana!

Viva a Professora Cleodice!

Obrigado.